Tristeza posta à mesa

Pacha Urbano
3 min readJan 29, 2020
Em um vídeo do YouTube - que parece ser um dos clipes que o Fantástico fazia no fim dos anos 70/80 pra promover artistas e músicos brasileiros - Belchior aparece estupendo de camiseta regata com S no peito e calças boca de sino, nosso super-homem nietzscheano.

A música “Na hora do Almoço” de Belchior foi apresentada a mim pelo meu amigo Moacir Lourenço. Foi perto da época da publicação do meu primeiro livro, Vidas Despercebidas, e eu recém tinha sido apresentado ao disco Alucinação (1976), pela minha amiga Estela Rosa. Essa música não faz parte deste disco, é de outro anterior: Belchior (1974), que vim a conhecer depois.

Só que a música é ainda mais antiga. É de 1971, quando ele concorreu com ela no IV Festival Universitário de Música Brasileira, promovido pela TV Tupi do Rio de Janeiro em agosto de 1971. Ganhou o troféu Bandolim de Ouro, Cr$10 mil (dez mil cruzeiros!) e uma viagem à Europa.

Segue a letra:

No centro da sala, diante da mesa
No fundo do prato comida e tristeza
A gente se olha, se toca e se cala
E se desentende no instante em que fala
Medo, medo, medo, medo, medo, medo
Cada um guarda mais o seu segredo,
A sua mão fechada, a sua boca aberta,
O seu peito deserto, a sua mão parada,
Lacrada e selada, e molhada de medo
Pai na cabeceira, é hora do almoço
Minha mãe me chama, é hora do almoço
Minha irmã mais nova, negra cabeleira
Minha avó reclama, é hora do almoço
Ei, moço!
E eu ainda sou bem moço pra tanta tristeza
Deixemos de coisas, cuidemos da vida
Se não chega a morte ou coisa parecida
E nos arrasta, moço, sem ter visto a vida
Ou coisa parecida, ou coisa parecida,
Ou coisa parecida
Aparecida

A letra tem um clima de tensão constante que atravessa a recordação de alguém (penso que de Belchior) dessa hora do almoço em família. O pai à cabeceira, soberano e ele, o filho, olhando a tristeza no fundo do prato, pra isso está de cabeça baixa, contrariado.

A mão fechada mencionada pode ser da raiva que sente do pai, pode ser a mão autoritária desse pai com promessa de violência. Ele repete “medo, medo, medo”. Depois se diagnostica:

“ainda sou bem moço pra tanta tristeza.”

Há uma atmosfera de desentendimentos.

A avó reclama: “É hora do almoço.”

E essa reclamação é o tipo de coisa que as famílias comungam; isso de tentar silenciar os dissabores com a hora de comer. Não importam as violências cometidas, as humilhações, respeitemos a hora de comer. E nisso “cada um guarda mais o seu segredo”, e a revolta contra esse patriarcado é silenciada.

No final da música ele filosofa ou desabafa:

“Deixemos de coisas, cuidemos da vida
Se não chega a morte ou coisa parecida
E nos arrasta, moço, sem ter visto a vida
Ou coisa parecida, ou coisa parecida,
Ou coisa parecida
Aparecida”

Estaria rogando?

Musicalmente, o baixo marca quase como uma pulsação, e o violino (ou rabeca?) muito ruidoso do começo, ziguezagueia, carregando algo de muito regional nele. Mais adiante uns trompetes parecem buzinas lá fora, entrando pelas janelas. A bateria arrasta a gente à morosidade daquela família.

Não sei vocês, mas fico muito emocionado ouvindo essa música. É uma crônica que retratou (retrata) muitas famílias latinas. Tantas mãos paradas, seladas, molhadas de medo.

Se vocês gostaram posso comentar outras músicas assim e compartilhamos nossas impressões. =)

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