Sonham as IAs com trabalhadores precarizados?

Pacha Urbano
4 min readFeb 2, 2023

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Arte gerada com uma IA para simular o meme do Capitão Picard, da série Star Trek Next Generation, com vergonha alheia.

O que gostava a princípio nestas Inteligências Artificiais que manipulam imagens é o quão próximas as artes ficavam de imagens oníricas. Iluminação difusa, sobreposições, desarranjos na composição, coisas desproporcionais nos cenários completamente integradas com o resto, como se nada. Mas sobretudo a possibilidade de se misturar conceitos diferentes em uma mesma imagem de forma integrada, como acontece em sonhos.

Como praticante de Sonho Lúcido, foi impressionante para mim ver algumas imagens e identificar a dificuldade dessas IAs reproduzirem mãos, exatamente como acontece nos sonhos, em que um dos verificadores de realidade é a checagem das mãos para ver se estão coerentes etc. Outra coisa que achava fascinante é como misturavam feições de pessoas diferentes, fazendo a gente hesitar de pronto de quem se trata, justamente como acontece nos sonhos.

Entretanto, o que vem sendo feito dessas IAs no meio das artes, da fotografia e da ética, transcende o meu gosto pessoal e esbarra num impacto perigoso para a sociedade. Incorrendo aqui no risco em soar ludista, pensando em quebrar as máquinas que oferecem risco à minha profissão, me assusta a velocidade como as pessoas abraçam sem qualquer discussão essas ferramentas, oferecidas pelas grandes corporações como brinquedos divertidos para nos distrair. E aí começam a proliferar jornais, revistas e editoras usando artes geradas por IA em capas e matérias em lugar de ilustrações e fotos feitas por artistas e fotógrafos. Claro que isso causa revolta e movimenta a classe trabalhadora das artes contra estas IAs e as empresas por trás delas.

Começa com filtros fazendo a gente parecer desenho animado, depois outros que fazem parecermos mais velhos, e a gente ri, e vai ensinando cada vez mais rápido essas IAs a processarem imagens e oferecerem resultados com a nossa validação. Penso aqui que a primeira vez que isso me causou um estranhamento foi quando surgiu aquele aplicativo que mostravam Pokemons dentro da nossa casa. Mapeamos nossos cômodos para poder brincar, e esses dados iam para algum lugar em nome da ludicidade. Mas antes disso a gente já tirava fotos de tudo com a popularização das câmeras digitais, em seguida com câmeras em celulares, 24 por 7, fotografamos nossa casa, o que comemos, onde trabalhamos, e a gente faz tudo isso achando divertidíssimo. Porque, de fato, é.

Só que quando um troço chega na gente para brincarmos e abraçarmos como realidade cotidiana, significa que outros muitíssimo mais avançados já estão trabalhando nos bastidores. Soa muito teoria da conspiração, né? Tenho aqui em casa um encarte de uma edição da revista Superinteressante de 1984, se não me engano, em que mostra a Terra vista do espaço, e a imagem satelital vai aproximando e aproximando e chega à superfície da mão de um cara deitado numa toalha de piquenique num parque. Muuuuuitos anos mais tarde, em 2004, por aí, popularizou-se o Google Earth, e agora a gente é super dependente do Google Maps na nossa rotina. Porém, vá saber o quão avançada essa mesma tecnologia se tornou. Talvez do espaço já enxergue em raio-X, não faço ideia.

O meu ponto aqui falando essas coisas é pensar na ética por trás das popularização das IAs.

Ontem vi uma publicação da Netflix Japão divulgando um curta metragem animado produzido por ela, e em que os cenários usados foram feitos por IAs a partir de artes esboçadas por humanos. Nos créditos da animação eles colocavam “Background Designer: AI (+ Human).” Pois é, gente, exatamente assim. Não creditavam quem era a pessoa, ou o grupo de pessoas por trás da palavra “Human”. Ainda acrescentavam a desculpa que fizeram isso para ajudar o mercado de anime que, segundo eles, é “carente de profissionais”. Vejam, o mercado de animação japonesa, assim como o de mangá, é extremamente precarizado. Ambientes terrivelmente tóxicos, jornadas de trabalho exaustivas, profissionais humilhados e mal pagos, sendo explorados em produções com prazos cada vez mais curtos, massacrantes. Mas uma IA não reclama, não se suicida sozinho em casa, não desmaia de fome e cansaço no transporte público.

Tem umas semanas, uma conhecida pelo Twitter me falou de uma IA que ela vem usando para escamotear em freelances que faz para um cliente mesquinho, uma empresa grande que constantemente diz não ter “budget” para pagá-la por serviços de redação de textos para publicações nas redes sociais. Esta IA consiste num tipo de chat em que ela faz solicitações e vão sendo criados textos complexos. Ela me mostrou exemplos e asseguro a vocês, indistinguíveis dos escritos por uma pessoa. A popularização dessa IA já fez tremer o meio acadêmico e jurídico. Há casos de uso dessa IA fazendo vestibular e passando em Direito e Medicina. Não era exatamente o futuro que os Jetsons nos venderam.

Logo, algo que a princípio era divertido, e a gente se espanta e alucina na brincadeira, se transforma em mais uma ferramenta para oprimir e suplantar postos da classe trabalhadora, cada vez mais escanteada e submissa. É como alguém disse no Twitter: um “sobrinho 2.0”, alguém que faz algo medíocre, mas passável, e mais barato que você. No fundo, algo que poderia servir para diminuir nossa carga de trabalho e nos permitir viver para além da obrigatoriedade de 44h semanais, ou seja, usufruir da experiência da vida com dignidade e plenitude, vira uma engrenagem mais nessa máquina fodida de moer gente que é o Capitalismo. Ninguém investe num brinquedo à toa, se o faz espera retorno financeiro avultante, e essas IAs são isso, produtos que vão gerar lucros.

A custa da gente, ao que tudo indica.

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