Fazer humor no século XXI

Pacha Urbano
6 min readApr 13, 2019

Para entendermos a condenação contra o Danilo Gentili é preciso lembrarmos alguns fatos.

Em abril de 2016, a deputada do PT Maria do Rosário, em seu perfil no Twitter, saiu em defesa de Jean Wyllys, que cuspiu em direção a Jair Bolsonaro durante uma sessão na Câmera dos Deputados depois de ser ofendido por este e pelo filho, Eduardo Bolsonaro, e também defendeu o ator e militante político José de Abreu — aquele que outro dia havia se autodeclaro presidente — por ter sido flagrado ao cuspir em um casal num restaurante em São Paulo depois de ter escutado uma porção de ofensas.

Em resposta, Danilo Gentili publicou três tuítes em que:

1) incitava a violência contra os outros e contra a deputada, resgatando o episódio em que ela discutiu com Jair Bolsonaro. E aqui precisamo recordar este episódio, quando em 2014, Maria do Rosário diz ao então deputado federal, que ao se colocar contra políticas de proteção à mulher, ele estaria ajudando a promover a violência, Jair Bolsonaro se descontrola e começa a gritar que ela o estaria chamando de estuprador, investe fisicamente contra ela e diz para todos ouvirem que ela era vagabunda e que a família dela era de estupradores de menores. Mais tarde, Jair Bolsonaro declara que não a estupraria porque ela não merecia, já que ela não faz o tipo dele por considerá-la feia.

2) a chama de falsa e cínica, por supostamente ter chamado Jair Bolsonaro de estuprador e ele ter reagido agredindo-a fisicamente, empurrando-a, ainda batendo na tecla do tal episódio da discussão entre ambos.

3) a chama de nojenta, e supondo que Maria do Rosário consideraria razoável que cuspissem em mulheres nordestinas, evocando o episódio em que o ex presidente Lula, tendo o sua conversa grampeada, pergunta a Paulo Vannucchi, onde estariam as “mulheres de grelo duro” do partido, e ela o teria defendido, afirmando que a expressão era elogiosa no Nordeste.

Na ocasião a deputada havia sido linchada virtualmente por conta desses tuítes de Danilo Gentili, o que resultou numa ação contra ele, em que Maria do Rosário alegou ter sido ofendida, tendo sua honra e imagem atingidas, pedindo que ele removesse os tuítes de seu perfil, já que ao dizer que ela aprovaria a conduta de quem responde uma cusparada com socos, estaria estimulando violência contra ela e outras mulheres.

Ao receber a notificação judicial da Câmara dos Deputados, solicitando que retirasse os tuítes ofensivos, ele fez um vídeo em que destacava a palavra PUTA em “Deputados” na carta, deliberadamente chamando Maria do Rosário de puta, e depois picava a notificação em muitos pedaços, esfregava em suas partes íntimas, e dizia que era para eles sentirem o cheio do saco dele e para enfiarem “no meio dela [Maria do Rosário]”, aqueles pedaços da notificação judicial rasgada. Então abria um envelope de Sedex e o enviava de volta pelos Correios, alegando que estaria sofrendo censura.

E, obviamente, não apagou os tuítes.

O vídeo, que de forma alguma se trata de um quadro humorístico, viralizou e surgiu nova avalanche de humilhações nas redes sociais contra a deputada Maria do Rosário, que decidiu processá-lo por injúria, uma vez que ao responder assim à sua notificação pedindo pela retirada dos tuítes, ele estaria “ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro”. A juíza Maria Isabel do Prado, da 5ª Vara Federal Criminal de São Paulo, o sentenciou a 6 meses de reclusão.

Na sentença a juíza ainda destaca:

“Portanto, da exegese do texto constitucional, denota-se que o direito fundamental da liberdade de expressão incontestavelmente está submetido a outros valores que hão de se irradiar sobre todo o campo normativo infraconstitucional.

Como consectário, na medida em que tal direito transforma-se em ferramenta de violação de outro direito igualmente fundamental, ou seja, o direito à honra, evidencia-se, em contrapartida, a sua necessária responsabilização pelo excesso ou abuso de tal liberdade.”

Em linguagem simples: o seu direito termina onde começa o direito do outro.

Não podemos apelar para a “liberdade de expressão” se essa expressão implica preconceito de cor, raça, gênero, classe social, religião. Se essa expressão implica humilhar e difamar uma pessoa à escusa do “humor”.

Danilo Gentili está sendo condenado não por ser “humorista”, mas por atentar contra a honra e a dignidade de uma pessoa, o que é previsto no Código Penal no artigo 140, e qualquer um de nós que tivermos nossa subjetividade maculada desta forma pode evocá-lo.

Artigo 140 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940
Art. 140 — Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena — detenção, de um a seis meses, ou multa.

Fica mais agravado porque, como parlamentar, ela é uma funcionária pública (Art. 141, II — contra funcionário público, em razão de suas funções;), e porque o alcance de Danilo Gentili nas redes sociais e fora dela é absurdamente grande (Art. 141, III — na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria).

Portanto, não é difícil entender que esta condenação não se trata de censura. Não há qualquer confusão entre essa condenação e a censura. Se a gente procurar no dicionário verá que “censura é a aprovação ou desaprovação prévia de circulação de informação ou de formas de expressão, visando os interesses de um Estado ou grupo de poder, criminalizando tais ações, ou mesmo a tentativa de exercer tal comunicação”. Ou seja, seria censura se ele fosse proibido de dizer o que quer que quisesse dizer. Tanto não foi proibido que mesmo depois da sentença deliberada ele continuou no Twitter falando um monte de abobrinhas, inclusive atacando quem o estaria defendendo.

Danilo Gentili, sabemos, é famoso não pelo humor inteligente e sutil, mas por sucessivas vezes agir publicamente de maneira preconceituosa com mulheres, pessoas homossexuais, pessoas negras, pessoas pobres, pessoas imigrantes. A cada vez que foi criticado por isso se defendeu com o escudo do “fazer humor”, alegando ser perseguido pela “ditadura do politicamente correto”.

O humor funciona em seu próprio tempo, já o bom humor o transcende.

O tipo de humor que Danilo Gentili pratica é retrógrado, não é mais condizente com o século XXI. Estamos quase saindo da segunda década do século XXI e piadas racistas, sexistas, homofóbicas, classistas, não são mais aceitáveis porque muitas das esferas afetadas por essas humilhações ganharam sua própria voz, porque evoluímos o suficiente para refinarmos o nosso humor para não submeter outras pessoas às situações de degradação moral e psicológica.

Certa vez num evento sobre quadrinhos, em universidade pública aqui no Rio de Janeiro, fui perguntado se via meu trabalho sendo afetado pelo “politicamente correto”. Era uma pergunta capciosa, uma vez que meu trabalho nas tiras de humor Filho do Freud atravessa temas difíceis como sexualidade, gênero, infância, educação, e respondi que era da minha parte a constante vigilância em tentar praticar um tipo de humor que não atingisse minorias, e que em geral aqueles que se dizem perseguidos pela “ditadura do politicamente correto” praticavam humor que flertava diretamente com a ofensa. Ainda assim, até hoje preciso rever constantemente o material que produzi e que não são mais condizentes com a realidade presente.

Muitos colegas quadrinistas e humoristas saíram em defesa do Danilo Gentili alegando que essa condenação abriria precedentes que poderiam resultar em uma “caça às bruxas do humor”, em um retorno à censura, e é uma preocupação genuína, sobretudo debaixo deste governo equivocado que se instaurou no país desde a última eleição. Mas convém lembrá-los que estamos muito longe de nos escorarmos na garantia de impunidade como Danilo Gentili vinha exercendo em sua profissão, em que em momento algum refletiu sobre o impacto de suas opiniões como pessoa pública.

Cabe ao humor ser inteligente e não inconsequente.

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