A tragédia também é cognitiva

Pacha Urbano
2 min readMay 7, 2024

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Charge de Jean Galvão para a Folha de São Paulo, em05/05/2024.

O Jean Galvão faz uma charge que dá um nó na nossa gartanta, o retrato de um apocalipse familiar, a interdição do luto e o medo de mais desgraça. É uma charge tristíssima. A situação no Rio Grande do Sul é tristíssima. Aí um cabra, sem qualquer letramento simbólico, excreta uma opinião de merda sobre algo que ele nem conseguiu pensar um segundo a respeito.

Não ocultarei a autoria da excrescência.

A epidemia de “Laerte não entendi” não é cômica, é trágica, reflexo do despreparo intelectual e afetivo da apreciação de manifestações artísticas. Todo mundo, em maior ou menor medida tem esse despreparo, mas nos últimos anos isso ficou escancarado demais. Alguns se orgulham disso.

Perdi as contas de quantas vezes fui bombardeado de “me explica” quando publicava alguma tirinha do Filho do Freud. Eu nunca expliquei nenhuma, não é meu trabalho enquanto quadrinista, humorista. Também não é trabalho do Jean Galvão explicar para ninguém o que está ululando.

Converso com colegas sobre o quão palpérrima vem sendo a produção de charges e tirinhas nos últimos anos, com setas e legendas explicando de antemão, sem qualquer subjetividade”. Mas diante dos comentários nas redes sociais, é compreensível o medo de ser mal interpretado e isso conduzir a um linchamento virtual imparável.

Entretanto, é importante deixar isso claro, não compete a nós quadrinistas, chargistas, cartunistas, artistas no geral, o didatismo ou auto censura. Esse é um problema basilar, que se agravou na última década obscurantista pela qual o país (o Ocidente de maneira geral) vem atravessando. O reacionarismo intelectual é uma peste que se alastra rápido demais.

Não se trata só de conservadorismo. As pessoas estão tão angustiadas e agarradas a conceitos retrógrados para lidar com o real, que qualquer dissonância causa repulsa e resistência intelectual imediata. Ninguém quer se permitir sentir diferente do que está acostumado. E isso é apodrecer.

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