A série do Freud sem o Freud

Pacha Urbano
14 min readMar 27, 2020

Se você ainda não assistiu à série, vai lá assistir e depois volte, ou não, fique e tome spoilers, porque o que farei a partir daqui é falar sobre vários elementos que atravessam os oito episódios de Freud (Netflix, 2019).

O primeiro que precisamos fazer é afirmar que não é o Sigmund Freud histórico que conhecemos. Ter isso em mente nos ajuda a aceitar melhor a história, sobretudo o primeiro e controverso episódio.

O segundo que precisamos fazer é esquecer a sinopse que circulou por aí, que seria uma série em que um jovem Dr. Freud ajudaria a investigar um assassino em série em Viena. Não é isso. É um pouco mais complicado.

O que a série trata, na verdade, é sobre como o jovem Dr. Freud, pobretão e bastante perdido nos rumos de sua carreira, é atropelado por uma conspiração política de ativistas separatistas e ocultistas húngaros que cometem sucessivos atentados terroristas sobrenaturais para desestabilizar o Império Austro-Húngaro.

É isso mesmo que você leu.

Mas a gente só tem essa noção mais para o final, depois de passar por um toboágua escuro, mal cheiroso e cheio de reviravoltas de uma trama confusa, repleta de narrativas paralelas, mas ao mesmo tempo envolvente por conta dos seus personagens secundários enigmáticos e profundos.

Lenore e Dr. Freud durante sua palestra para a sociedade médica de Viena.

A série já começa apresentando o jovem neurologista Dr. Freud, cocainômano e embusteiro, combinando com sua governanta, Lenore, de aplicarem um transe hipnótico falso durante a apresentação de suas pesquisas para a sociedade médica de Viena de 1880. O seu discurso sobre o inconsciente é poético e ao mesmo tempo bastante esclarecedor sobre como serão os próximos episódios da série. Transcrevo a seguir:

Eu sou uma casa. Está escuro em mim. Meu consciente é uma luz solitária. Uma vela ao vento. Ela cintila. Às vezes aqui, às vezes acolá. Todo o resto está nas sombras. Todo o resto está no inconsciente. Mas ainda estão lá. Os outros cômodos. Nichos, corredores, escadas e portas. O tempo todo. E tudo que vive e perambula dentro de nós está presente. Trabalha e vive. Dentro da casa que sou. Instinto, desejos e tabus. Pensamentos proibidos. Desejos proibidos. Memórias que não queremos ver sob a luz. Que afastamos da luz. Elas dançam na nossa escuridão. Nos atormentam e nos atiçam. Elas assombram e sussurram. Elas nos assustam. Nos adoecem. Nos tornam histéricos.

Como de fato aconteceu, nem mesmo Dr. Breuer, seu mentor e companheiro de pesquisas, conseguiu dar conta da pressão da sociedade médica sobre o Freud e suas ideias absurdas para o pensamento da época, que era restrito aos sintomas físicos dos pacientes. Este é um ponto bastante interessante da série, em que é mostrado o interior do asilo de alienados e como eram as “técnicas terapêuticas” empregadas nos pacientes. Banhos de imersão em água congelante, confinamento em saunas individuais quentíssimas para induzir estados febris, jaulas para aprisionar os mais agitados e gaiolas de arame na cabeça para os mais violentos.

Pacientes em um asilo para alienadas sendo tratadas com indução artificial de estados febris no século XIX.

Ao longo dos episódios acompanhamos os embates epistemológicos e de métodos de tratamento dos pacientes entre Freud e Dr. Meynert — anatomista cerebral famoso na época e diretor do hospital psiquiátrico em que o jovem neurologista trabalha, resultando em momentos impressionantes. Em um deles, o Dr. Meynert deixa escapar um dos sintomas histéricos que carrega, e o jovem Freud o observa perplexo. Em A Interpretação dos Sonhos, Freud nos conta que Meynert o confessou ter sido um histérico e como isso o afetou durante toda sua vida.

Este é um dos muitos easter eggs da série, aqueles pequenos bombons que os roteiristas deixam cair pelo caminho, ou escondem nos cantinhos das cenas, para os mais atentos e conhecedores da história da Psicanálise encontrar.

Outros easter eggs são menos discretos, como em uma das alucinações provocadas por transes hipnóticos, Freud vê uma senhora passeando com um cachorro da raça chow chow que, bem se sabe, era sua paixão. Teve por companhia nos últimos anos de vida uma cadelinha desta raça chamada Jo-Fi.

Em outra cena, enquanto pesquisa sobre criaturas sobrenaturais culturas antigas, Freud levanta o divã de seu consultório e tira um livro de fábulas e mitos debaixo, que fazia calço para um dos pés. Foi uma metáfora visual muito gostosa e divertida de se ver. Também é possível ver o seu desconforto ao visitar a casa dos pais e deparar-se com as práticas religiosas judaicas as quais é completamente avesso, recusando inclusive a usar a kipá — aquele chapeuzinho no cocuruto — durante as cerimônias domésticas, que sua mãe insiste em lhe colocar e que ele discretamente retira, sob o olhar de reprovação do pai.

Dr. Freud e o Inspetor Kiss perplexos com uma cena brutal de suicídio.

Ainda no primeiro episódio Dr. Freud conhece o Inspetor de Polícia Alfred Kiss que com a ajuda de seu rechonchudo assistente, Franz Poschacher, leva para sua casa uma vítima de tentativa de assassinato. Bem, a leva para lá porque era o médico mais perto nas redondezas de um bordel onde a moça vivia. A moça não sobrevive e morre em cima da escrivaninha de Freud. A causa da morte? Sucessivas estocadas de baioneta — aquele punhal que se acopla à ponta dos fuzis — em sua vagina. Essa brutalidade deixada sobre sua mesa é bastante representativa quando pensamos na obra de Freud, tendo como seminal as genitais e as questões da sexualidade como foco.

Abandonado pelos policiais com o cadáver da moça em sua casa, não demora até que seu amigo Arthur Schnitzler apareça e o leve para uma festa de aristocratas onde são surpreendidos com uma séance, uma sessão espírita.

E aqui é preciso chamar a atenção para duas coisas.

A primeira é para Arthur Schnitzler, escritor e médico alemão, também aluno de Meynert, que foi considerado pelo próprio Freud como sendo o seu duplo, sua contraparte. Admirador da obra de Schnitzler, que não conhecia pessoalmente, apenas por correspondência, via no escritor um “explorador das profundezas” e que trazia à tona com seu trabalho “as verdades do inconsciente.” Em uma carta enviada ao amigo em 1922, Freud dizia:

“Sempre que me deixo absorver profundamente por suas belas criações, parece-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço como meus próprios. Ficou-me a impressão de que o senhor sabe por intuição — realmente, a partir de uma fina auto-observação — tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho.”

E é legal ver como a série marca bem isso, colocando os dois como tendo personalidades bem opostas. De um lado o Dr. Freud, mal arrumado e com meses de aluguel atrasado, em uma festa de gente rica, se sentindo extremamente desinteressante e deslocado; e de outro está Arthur, muito elegante, extrovertido e que conhece meio mundo da alta roda.

Um adendo a partir de informação dada pelo amigo Vladmir Melo, psicólogo de Brasília: Arthur Schnitzler foi o autor do livro Breve romance de sonho, adaptado para o cinema em 1999 por Stanley Kubrick com o filme De olhos bem fechados.

É aqui que entra a segunda coisa que chamo a atenção a vocês: em meados do século XIX houve uma onda ocultista frenética. Personalidades como Helena Petrovna Blavatsky, Irmãs Fox e Arthur Edward Waite despontaram como baluartes desta febre.

Sessão de mesa girante na Europa, século XIX.

Muitas festas aristocráticas do período eram animadas por médiuns ou sensitivos, pessoas que se diziam serem capazes de ler a sorte, falar com os mortos, levitar, manipular objetos à distância, e até realizar materializações ectoplásmicas. Claro, abrindo um mercado para toda sorte de vigaristas e prestidigitadores. Foi nessas festinhas que rolaram os fenômenos das “mesas girantes” que fez o professor Hippolyte Leon Denizard, o Allan Kardec, se interessar pelo tema e anos mais tarde criar o espiritismo.

Houve também uma “egitomania”, um interesse avassalador dos europeus pelo Egito Antigo resultante das missões de Napoleão ao norte da África, principalmente no Delta do Nilo. Obeliscos instalados em praças e avenidas, todo tipo de joalheria com escaravelhos, esfinges e pirâmides ornando edifícios e decorando as casas por toda a Europa, são as marcas do impacto dessa onda de cultura egípcia no período.

Na série isso fica marcado porque em dado momento Viktor Szápáry, um aritocrata húngaro ocultista, empolgado com uma “Noite Egípcia” em sua mansão, pretende elaborar um ritual mágico e precisa de uma múmia. Pois é, ele em Viena está preocupado em conseguir uma múmia para uma cerimônia. O detalhe é que ele consegue uma múmia, uma múmia de criança, e isso porque muitos templos e pirâmides egípcias foram largamente saqueadas durante o século XIX, e estatuetas, jóias, artefatos de todo tipo, inclusive sarcófagos e múmias, eram traficadas para a Europa e iam parar nas mãos de quem tinha dinheiro para obtê-las.

Entretanto, é essa aproximação com o ocultismo e o charlatanismo (daquela sessão de hipnose para os médicos de Viena), somada à persistência em mostrar o jovem Dr. Freud consumindo doses cavalares de cocaína, que perturba tanto neste primeiro episódio da série. Freudianos vão se sentir ultrajados ao verem na tela o seu mestre sendo representado de maneira tão desrespeitosa e constrangedora.

Por outro lado, penso, a persona Sigmund Freud é de domínio público, é como um Che Guevara ou uma Frida Khalo, mais elásticos que suas próprias existências históricas, vestindo e estampando o imaginário da cultura pop das mais diferentes formas, cores e tamanhos. Eu mesmo faço uso do Freud e sua família na minha série de tirinhas de humor Filho do Freud, entendo essa liberdade criativa dos roteiristas em se distanciarem da figura histórica.

Então aceitei a série e mergulhei de cabeça nas tramas e subtramas sem medo, melhorando muito minha experiência com a obra.

Fleur Salomé, sensitiva húngara convulsionando durante uma sessão mediúnica.

Durante a sessão espírita em que Freud e Arthur estão presentes, somos apresentados ao casal ocultista húngaro Sophia e Viktor Szápáry, e sua protegida, a sensitiva Fleur Salomé — aqui, inegavelmente uma homenagem pouco honrosa à mulher forte, inteligente e ousada que foi a psicanalista russa Lou Andreas-Salomé. Ao encarar o antipático médico e colega de Freud, Dr. Leopold von Schönfeld, Fleur mergulha em uma sombria e assustadora visão envolvendo a pequena Cara von Schönfeld, irmã caçula do médico aritocrata, também presente na séance. Não conseguindo se livrar dos horrores do transe, o corpo de Fleur entra em convulsão, e a sessão é encerrada.

Mais adiante descobrimos que a jovem médium é sodomizada e mantida em cativeiro na mansão dos Szápáry através de sucessivas sessões de hipnose, desde a sua infância, e que cada vez mais vão deixando traumas profundos na moça.

A hipnose como arma já foi vista em alguns contos fantásticos mas é mais conhecida no filme expressionista alemão O Gabinete do Doutor Caligari (Robert Wiene, 1920), onde acompanhamos o pobre sonâmbulo Cesare ser manipulado pelo perverso Caligari para cometer crimes hediondos, chegando ao ponto de ser engolido pelos efeitos hipnóticos sobre si e perder a noção do que é ou não real.

Assim é a vida de Fleur.

Madame Sophia von Szápáry e o jovem Freud num duelo hipnótico.

Na série a hipnose é muitas vezes usada como um Deus ex Machina, a solução milagrosa e fácil para solucionar os quebra-cabeças, as encruzilhadas ou os becos sem saída da trama, o que pode ser bastante enfadonho para pessoas mais exigentes. Ou gente como eu que fica se contorcendo com o suspense das cenas para no último minuto tudo se resolver com uma “palavra mágica”, uma saída do transe. A coisa é usada à exaustão. Nem as menções ao trabalho de Jean-Martin Charcot, antigo mestre francês de Freud, ou mesmo o flerte com a obra de Arthur Schnitzler deixa a coisa mais interessante.

Mas o mais interessante e o que chama a atenção nessas sessões de hipnose, na verdade, são as visões produzidas pelo inconsciente dos personagens. E é nisso que devemos nos agarrar para entendermos mais a história da série.

Os oito episódios têm nomes sugestivos e que ditam o tom das tramas e subtramas de cada um: Histeria, Trauma, Sonambulismo, Totem e Tabu, Desejo, Regressão, Catarse e Supressão.

As imagens ou alucinações geradas nessas sessões de hipnose expressam em muito o tema central do episódio. Como no segundo episódio, em que o Inspetor Kiss, depois de provocar um antigo superior de guerra até que ele o desafie a um duelo de vida ou morte por sua honra, pede ao Dr. Freud que o hipnotize e o ajude a se curar de seu trauma de guerra. Os sintomas histéricos que o faziam ter cãibras atrozes na mão direita—que usaria para empunhar a pistola no duelo—precisariam ser neutralizados ou ele não teria qualquer chance de sobreviver. Ali descobrimos um pouco sobre o passado de Kiss e o quão profundas em nossa alma podem ser as cicatrizes deixadas por um trauma.

Mensuren, praticantes de Mensur, posando com honra e altivez.

E por falar em cicatrizes, logo que os primeiros personagens apareceram em tela com marcas de cortes no rosto, lembrei da prática do Mensur, um duelo de espadas praticados por estudantes e cadetes de distintas fraternidades que resultavam em lacerações e mutilações de partes do rosto. Apesar de muitas vezes serem clandestinos, um mensuren exibia com honra suas cicatrizes de duelo. Vários personagens da série tem cicatrizes, o que sugere um ambiente de masculinidade extremamente tóxica, verdeiras esgrimas de falos por cada episódio, com demarcações de território, disputas de poder, humilhações públicas, repressão feminina, e claro, homossexualidade enrustida.

Curiosa, porém não surpreendente, é a permanente influência da figura paterna nos personagens. Todos os personagens assassinos, influenciados pela manipulação hipnótica do casal Szápáry, é vítima da sombra dos pais. O médico Leopold von Schönfeld, cujo pai falecido o deixou para ele os cuidados da mãe histérica e da irmã pequena; Georg von Lichtenberg, rival de Kiss, homossexual às escondidas, cujo pai é um general severo e implacável, estapeando o filho mesmo depois de morto; Frantisek Mucha, famoso cantor de ópera vienense na história, mesmo adulto vivia sob o teto dos pais; Príncipe Rudolf, filho do Kaiser, que cresceu sofrendo bullying por ser fraco, pequeno, medroso e inferior ao pai. Mesmo o Inspetor Kiss, que arrasta o peso da morte do filho, ou o jovem Freud, e sua culpa inconsciente por desejar a mãe e a aprovação do pai, vendo em Breuer e em Meynert o espelho paterno.

Fleur Salomé, vítima daqueles que deveriam protegê-la.

Embora a série se chame Freud, é Fleur Salomé que monopoliza a trama, roubando para si as atenções do doutor, dos seus algozes e pais adotivos e do Inspetor Kiss, preocupado em solucionar os crimes que continuam pululando em sua cidade e circundam a moça. Apesar do carisma da atriz, é impossível não olhar para a personagem e pensar imediatamente em outra bem melhor desenvolvida, a impressionante senhorita Vanessa Ives, da série de terror Penny Dreadful, interpretada por Eva Green. Vocês devem lembrar.

Todo o arco de Fleur poderia ser melhor explorado se se restringisse apenas ao labirinto de sua mente, seus traumas e histórico pessoal como vítima da guerra de ocupação Austríaca sobre a Hungria, mas os roteiristas insistiram em colocá-la num lugar de paranormalidade desconfortável para o resto da história. Se retirassem o elemento sobrenatural da série, focando no aspecto da psiquê humana — ainda que isso fizesse parte do jogo narrativo (é algo fantástico ou real?) — , a proposta seria muito mais honrosa para o público simpático à Psicanálise, a Freud que empresta o nome a série. Mas diretor e roteiristas optaram pelo viés do entretenimento e resultou em algo que ficou pelo meio do caminho. Nem lá nem cá.

Inspetor Alfred Kiss em sua cruzada pessoal.

De todos os personagens, o que tem seu arco melhor resolvido é o Inspetor Kiss. Pouco a pouco vamos montando o triste mosaico de sua história e entendendo o porquê de sua brutalidade, sua raiva contida. É triste vê-lo agarrar-se aos momentos de ternura com suas netas e sua nora. Enxergar através dos seus olhos o peso da responsabilidade para com aquelas pessoas ao mesmo tempo em que é arrastado para o fundo de si mesmo por conta da culpa de ter contribuído, em um movimento perverso do seu rival, Georg von Lichtenberg, com o suicídio de seu filho, Otto.

Seu sintoma histérico causado por um trauma de guerra — a mão que se recusa a atender às ordens de seu dono — é reflexo de si mesmo, como alguém que intimamente se recusava a atender às ordens que lhe ditavam enquanto soldado imperial. E aqui lembro de um dos versos Hey Joe, versão do grupo O Rappa da música de Jimmy Hendrix, em que o então vocalista Falcão cantava: “Também morre quem atira.”

Regressando sucessivamente ao seu inconsciente para aquele momento traumático de sua vida, Kiss morria a cada vez que disparava seu revólver contra os prisioneiros bósnios, morria a cada vez que via seu filho disparar o revólver em sua própria boca. Suicidando-se o filho, no passado, suicidando-se ele no presente, enfiando-se em duelos de morte, embriagando-se à inconsciência, desafiando superiores, em comportamento altamente destrutivo.

Mesmo tendo aceitado a sugestão hipnótica do Dr. Freud em “matar a ordem” em vez de matar os prisioneiros, e com isso sendo “autorizado” a disparar contra Georg von Lichtenberg em duelo de honra, o assassinando, Kiss não consegue libertar-se. Tampouco seus opositores o permitem seguir livre, perseguindo-o e levando-o ao limite da paranoia. Sua escapatória é salvar o filho de outra pessoa, o filho do Kaiser, evitando que um atentado terrorista sobrenatural arruinasse o império.

A catarse final vem quando Kiss se despede de sua família, de seu amigo e assistente Poschacher, e de Freud, sendo engolido pelos seus monstros internos, refugiando-se nos canais de Viena.

O jovem Dr. Freud procurando se entender em meio ao caos.

Freud é uma série que quanto mais se para para pensar a respeito mais detalhes saltam para serem analisados (me perdoem o trocadilho), o que é delicioso com qualquer obra. A experiência de maratoná-la foi muito divertida e prazerosa. A direção de arte está impecável, reproduzindo o período com rigor e qualidade. As locações, o vestuário, os objetos de cena, os gestos, práticas médicas, as comidas, os hábitos vitorianos da aristocracia, mostrando uma Europa oriental tentando ocidentalizar-se, cosmopolizar-se, com atrações artísticas sofisticadas e às vezes libidinosas, como os “quadros vivos”, descambando em pequenas orgias. Enfim, é de aplaudir.

Por outro lado, terminamos querendo mais Freud em Freud.

Os dramas familiares dos Freud, sua relação resvaladiça com Martha Bernays, as imposições da vida econômica desastrosa, seus desencontros epistemológicos com Joseph Breuer, sua sexualidade reprimida, nada disso forra o bastante o personagem de Freud na série. Continuamos sentindo falta de mais presença, mais do seus conhecimentos sobre a mente humana, de sua personalidade afiada tão conhecida.

Talvez aí esteja a grande questão: nós temos a ideia de um Freud integral e não um Freud em construção, e na série ele é isso, alguém tentando se encontrar num turbilhão de acontecimentos fantásticos e pessoas enigmáticas.

Nas cenas finais, quando ele sobe as escadas de seu prédio, voltando para a casa depois de tudo, e em cada andar ele vai repassando mentalmente as pessoas que cruzaram seu caminho até ali — cena preciosíssima !— nos aproximamos mais do Freud que conhecemos, o Freud que gostaríamos de ter visto na tela todo o tempo até aqui.

E talvez tenha sido essa a intenção da série, mostrar o arco do jovem Dr. Freud antes dele ser quem foi. O estofo que sentimos falta desde o começo.

A série ficou muito bem amarrada e as pontas deixadas soltas poderiam vir a ser amarradas em outra temporada. Uma em que estaremos diante de um Freud muito melhor preparado para as adversidades.

Quem sabe?

--

--